sábado, 23 de julho de 2011

PREVISÃO DO TEMPO - CRÔNICA 1.

(por Guilherme de Melo Sarmento Filho)


Estado do Rio de Janeiro, 23 de Julho de 2011, céu nublado com indícios de chuva, probabilidades de sol ao anoitecer, no fim do dia.


Em 1635, um ano após o pedido do governador Rodrigo de Miranda Henriques para que se pudesse utilizar dos recursos da Fazenda Real para obras necessárias de defesa na cidade do Rio de Janeiro colonial, o Conselho da Fazenda em Lisboa desculpava-se ao monarca reconhecendo a importância daquele pedaço do império no Atlântico Sul, mas que os cofres régios encontravam-se esgotados em conseqüência das despesas de combate aos holandeses em Pernambuco. O ônus da tarefa teria de pesar nos ombros dos moradores da cidade.

Durante todo o século XVII e XVIII, o importante instituto da Câmara Municipal - cujos quadros eram preenchidos não por reinóis, mas por colonos, principais da terra, “homens bons” como se dizia – era um dos principais elementos da sustentação de um império ultramarino que teve de usar de muita flexibilidade e concessão para fixar o seu domínio régio. Em alguns casos, como em Macau, por exemplo, seus oficiais foram vislumbrados como os verdadeiros detentores do imperium sobre a colônia pelo imperador chinês, sendo reconhecidos também pela metrópole como conseqüência. Aos moradores das cidades coloniais cabia a responsabilidade sobre o financiamento das obras importantes de defesa, assim como o reparo de fortalezas com o seu devido guarnecimento, pagamento dos soldados e tudo que dizia respeito direto à manutenção da boa ordem da cidade, afim de que o bom serviço à Sua Majestade revertesse na concretização dos seus interesses reais do cotidiano. Se pensarmos que até a primeira metade do século XVIII predominou um tipo de mentalidade medieval avançada, como a noção de vassalagem, por exemplo, essa relação de poder não é nenhum absurdo.

Todo esse poder relativizava o absolutismo e o monopólio régio de uma maneira que só as circunstâncias no cotidiano poderiam legitimar, fazendo os colonos - apesar de se sentirem como leais filhos do império português - terem a real consciência da pertença sobre o chão sob os seus pés, numa relação de apropriação do espaço que não visava a independência da metrópole, mas que sabia reclamar perigosamente quando via seus interesses cerceados e “exigir” de forma educada a divisão do poder com os funcionário régios.  Ao monarca interessava que assim fosse pela simples razão de poder fiscalizar melhor todos os seus vassalos, funcionários e colonos, desde que todos contribuíssem com sua parte aos cofres régios e o brasão português resplandecesse nos horizontes.

Há alguns meses atrás, em 2010 ou 2011, o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral Filho, entrou com uma liminar no Supremo Tribunal Federal, junto com outros governadores, para tentar barrar um aumento para os professores vislumbrado por lei do Congresso Nacional, alegando que o Estado não tem dinheiro para pagar. Eis aonde o meu discurso quer chegar com esta comparação histórica.

Como eu disse anteriormente, a mentalidade predominante até a primeira metade do século XVIII era medieval avançada. A contradição entre logos e mito gerava expressões de culpa e desorientação nas artes do barroco, a vassalagem era reconhecida como um dever, uma obrigação, o ritmo do dia a dia e das transformações era compassada ao sabor dos passos do boi nas rodas de moer açúcar e na suavidade e morosidade com que as velas dos navios singravam os mares durante meses, promovendo o vai-e-vem das mercadorias e das comunicações. Nos Estados mais católicos como foi o português, por exemplo, a demora na solução de problemas, que muitas vezes eram premeditados e somente solucionados depois que aconteciam, casava bem com um tipo naturalista e finalista de ser, que pedia grandes ganhos com o menor esforço possível e que deixava as respostas – que já eram dadas por Deus - ao sabor dos acontecimentos. Aos colonos pesar o ônus da sustentação de suas respectivas cidades nada mais justo e natural que assim fosse como dever de vassalos de Sua Majestade, e a aparente contradição entre cofre régio lesado e luxo da Corte perde a sua força quando o que predomina é ainda a noção das três ordens, onde a riqueza da nobreza é um direito divino.

Já o discurso do governador Sérgio Cabral e de toda a Democracia Liberal assume contornos sinistros porque é o utilitarismo a serviço da ausência do debate. A naturalização da mentira, sustentada pelas grandes mídias, como forma de impor o tecnicismo sobre o humanismo quando diz que os professores não podem ter salários dignos com o real valor do seu trabalho porque a economia do Estado pode “quebrar”, sendo o contrário quando o que está em jogo é salvar bancos ou construir para a especulação imobiliária, o que me faz pensar que das duas uma: ou o liberalismo acredita na mentalidade que regeu o absolutismo ou acredita na democracia que se diz protetora e em ambos os casos ela está sendo hipócrita, já que o tipo de Estado que defende teve sua gênese a partir da segunda metade do XVIII e pregava e ainda prega a igualdade, a fraternidade e a liberdade, percebendo na educação importante ferramenta de emancipação dos povos e que enxerga como dever do Estado suprir as lacunas sociais com os recursos dos impostos que é dever de todo cidadão.


Referência Bibliográfica:
BICALHO, Maria Fernanda. A Cidade e o Império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

7 comentários:

  1. Parabéns pelo texto!!! É uma pena que nosso
    Estado, País esteja caminhando para o buraco, para a banalização da Educação.
    Bjs

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Muito bem escrito, porém com um salto de raciocínio gigante. Salto que dificulta a compreensão do que se pretende relacionar com o governo facista Cabral. O liberalismo do qual Cabral e sua laia comungam não é mais aquele a que vc refere, à moda francesa de 1789.Seu salto de raciocínio fica comprometido pelo salto histórico que ele executa. No momento atual, de ausência de possibilidade de expansão do modo de produção capitalista (porque todos os territórios já foram invadidos por esse modo de produção) a única possibilidade de mantê-lo é exatamente exterminando a existência do que se configura como o excesso. E, no caso, a população pobre, ou como vc diz os povos, é o que excede nesse projeto civilizacional.

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  4. Sabrina, você disse que eu tenho direito a uma réplica, certo?rsrsrs... não acho que o liberalismo seja tão diferente assim do final do XVIII, obviamente que desenvolvel instrumentais novos e mais sinistros, mas, na prática, ainda é o mecanismo para a sustentação da classe burguesa no poder, o que não tem problema nenhum, todo mundo tem o direito de estar no poder, mas nós precisamos incitar o debate sobre o discurso que o liberalismo prega e sua prática. No caso do salto histórico, admito ele sim e o fiz com o raso propósito de me utilizar da história como ferramenta de diálogo com o presente, no caso do texto, a comparação entre a mentalidade que faz a coroa negar o apoio financeiro em 1635 e a mentalidade que faz o Cabral negar o financiamento pelo Estado do salário do professor.

    Beijos grande linda!

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  5. E tenha outra coisa relevante que legitima os saltos históricos, a linha de tempo linear, sequencial, causa após causa, é um discurso de uma historiografia apenas, a positivista, porém existem outras correntes que não reconhecem essa linha, abrindo para a possibilidade de se utilizar de qualquer recorte afastado no tempo para se estabelecer pontes com o presente.

    beijo!

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  6. Parabéns, a revista está linda. Precisávamos de uma algo desse tipo. Espero que a revista se torne fonte de consulta para os estudantes de um modo geral e de todos que apreciam a história como realmente ela é. Aqui vai uma sugestão, se vocês me permitem, ao abordar um fato histórico, abordem também todo o contexto da época (arte, economia, religião, etc..). Bjs.

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  7. Parabéns, bela revista... Ótimo texto!
    Muito bom te ler aqui, Guila!
    Bjs

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