quinta-feira, 14 de julho de 2011

PODER RÉGIO, PAIXÃO E EREMITISMO NA OBRA DE JUAN DE ENCINA. por Marcos Arêas Coimbra


Juan de Encina foi um dramaturgo do séulo XVI que escreveu parte de sua obra sob o mecenato do Duque de Alba, vassalo dos conhecidos " Reis Católicos ", Fernando de Aragão e Isabel de Castela.
A obra deste autor aqui analisada foi escrita no período cronológico acima mencionado e trata da Paixão de Jesus Cristo. Na realidade o seu texto encena a caminhada de dois eremitas rumo ao Santo Sepulcro, onde se encontram, milagrosamente, com Verônica, mulher responsável por entregar a Jesus Cristo o pano com o qual teria enxugado seu suor e sangue e deste modo criado o Santo Sudário.

Deste encontro podemos extrair um discurso onde Verônica enfatiza aos eremitas, um mais velho, outro mais moço, mestre e discípulo, a importância do sacrifício do Messias para a salvação de toda a Humanidade.

Pois bem, ao lado deste elementos contextuais da obra, podemos ressaltar questões mais profundas, de cunho ideológico, construídas pelo autor propositalmente, com o objetivo de exaltar em sua obra a imagem que se propunha consolidar do poder régio em questão.

Como o próprio adjetivo de tais reis nos permite, sem qualquer dúvida, afirmar, a imagem régia escolhida para conotar a legitimidade (a soberania) da presente realeza era a do chamado "Rei - Cristão". Ou se quisermos " Rei-Cristo" - " Cristo-Rei".

Vejamos passo a passo o que se quer aqui conceber:

1 - Porque eremitas? Tendo em vista que este texto teatral cumpria uma função de propaganda da imagem régia, imagem específica como afirmamos acima, o eremita traz consigo toda uma gama de especificidades que neste tempo era de extrema valia aos propósitos do autor.

O movimento do eremitismo é muito mais antigo do que o século XVI, remontando mesmo aos primeiros movimentos do cristianismo. Mas com o resgate desta figura nos séculos XI-XIII, o imaginário medieval imbuído de sua notória sacralidade profunda, enxergava neste - ao realizar a sua fuga mundi - um ser de extrema entrega aos preceitos da vida evangélica, repassando os passos de Cristo, Deus feito homem, e com isso sofrendo as suas provações.

Colocar-se diante desta enorme responsabilidade era sinal de purificação da alma de um Homem que viera a este mundo exatamente como peregrino na busca de sua salvação.

Não convém, nem é este o objetivo aqui, esmiuçar o movimento do eremitismo no bojo da Renovação das Sensibilidades (sécs XI-XII), mas somente demonstrar que a utilização por Encina destas figuras, está repleta de uma intencionalidade, de uma consciência de que tal personagem pode fazê-lo mais efetivamente alcançar seu objetivo, qual seja, realizar uma propaganda da santidade dos que o patrocinam e cativar a opinião pública disto.

Você pode estar se perguntando pela razão da utilização aqui de termos tão "modernos" como opinião pública e propaganda política. Isto se deve à apropriação que fazemos das mais recentes construções historiográficas, sobretudo, da obra de José Manuel Nieto-Soria.

Destarte, ao utilizar eremitas como protagonistas de sua peça, Encina está se apropriando de uma figura do imaginário medieval privilegiada no intuito de se referir à busca por uma vida santa, ou ao menos, mais pura.
Assim podemos do mesmo modo lembrar, mais uma vez, a força da sacralidade na constituição da moral coletiva do medievo.

2- Porque a Paixão de Cristo como tema de sua peça? Ora, se ao autor incumbe realizar ato de dramaturgia que leve o público constatar, mesmo que indiretamente, a inclinação e aceitação de seus mecenas ao caráter fundamental de uma vida Santa, nada mais conveniente do que se utilizar do momento mais profundamente marcado pela entrega de um ser ao Bem Comum, ou seja, o sacrifício extremo de Deus para salvar a humanidade de sua perdição, o Pecado Original.

Era sem dúvida alguma importante fazer demonstrar que o apoio ao espetáculo - por parte, tanto do Duque de Alba, como por analogia daquele que era o seu senhor, ou seja, os monarcas espanhóis - à uma peça com este conteúdo, somente seria realizado por um poder que estima e respeita tal conjunto de valores.

Logo, o apoio expresso á encenação da paixão faz com que o "dono" do espetáculo absorva os méritos de ser um homem público preocupado em trazer a santidade aos seu súditos.

Assim não fica muito difícil chegarmos à conclusão de que esta atitude estava em plena consonância com a política de consolidação da imagem de uma monarquia beneficiada pelos favores de Deus, e, deste modo, ali empossada com a sua aprovação, senão, imposição.

3 - Poder régio e Teatro. Qual a correlação? De algum modo esta pergunta já está respondida nos trechos acima, mas, tendo em vista a relevância do tema, não é demais continuarmos tecendo comentários sobre tal problemática.

Quando uma monarquia detinha o poder, diferente do que se convencionou pensar, era obrigada a construir toda uma rede de elementos de propaganda política e de relações de poder com seus súditos, capaz de legitimar e consolidar este poder frente ao conjunto de valores aceitos no período em questão.

A moderna historiografia continua velando profunda atenção aos instrumentos político- institucionais, como o jurídico, o religioso, o social, o militar, o legislativo, etc, mas junto a estes um outro determinante foi alçado ao mesmo patamar na construção do projeto de poder, qual seja, o âmbito do simbólico.

O que seria o simbólico?

Para responder tal indagação já podemos adiantar algo fundamental: a aceitação veemente dos fenômenos literário-símbolicos como "documentos sociais" aptos a permitir o historiador reconstruir objetos constituintes das relações de poder.

O teatro, portanto, é visto como tão indispensável quanto uma campanha militar na manutenção do poder por aquele que o detém. Aqui entramos na seara das imagens régias.

Era parte constituinte do programa político de todo monarca a construção de uma específica imagem, ou seja, da utilização do acima mencionado simbólico.

Assim veremos reis sábios, guerreiros, messias, e até mesmo inúteis. No caso em que nos detemos, a imagem era, como já dito acima, a do "Rei-Cristão", mais especificamente, o "Rei-Católico".

Isto quer dizer que toda manifestação régia enquanto propaganda política era "fabricada" com vistas a reforçar esta imagem. Mesmo quando a peça teatral era apresentada longe da corte real, o simples fato de ser realizada no território controlado por esta monarquia em particular, fazia "respingar" proveitos e bonanças políticas, trazendo os súditos, em seu imaginário coletivo, para mais perto da crença em um poder régio pleno de conteúdos ideológicos teológico-moralizantes.

E quando dizemos teológico-moralizantes, não o fazemos à toa, posto que, ainda era muito forte a importância da crença nos fundamentos sagrados do poder, mesmo no séc. XVI.

Fazer acreditar que o seu poder era emanado, senão, delegado por Deus, era tão importante ao monarca quanto vencer batalhas. Na realidade as duas coisas estavam interligadas, pois a vitória só afirmava o posicionamento do Rei enquanto detentor dos favores de Deus, este sim, o verdadeiro soberano.

Naturalmente que a discussão dos fundamentos ideológicos do poder de cunho teológico por si só é questão para longo debate, o que não é o intuito aqui. Desejamos somente demonstrar que a construção, por Juan de Encina, de uma peça teatral trazendo em seu bojo figuras como eremitas, anjos, etc, e cujo tema era a Paixão de Cristo, está profundamente inserida na lógica apresentada acima.

Não o fazia o dramaturgo somente por convicção pessoal, crença ou licença poética, mas com alguma intencionalidade voltada a agradar aqueles dois pólos da equação: os detentores do poder - o público almejado.

Há sempre uma circularidade nesta equação. Diverso de uma história escrita calcada nos grandes feitos e grandes homens, a sensibilidade do historiador atual deve voltar-se na compreensão de que esta circularidade está inserida em um conjunto de micro-poderes responsáveis pela conformação do que é legítimo ou não.

Conclusão:

Frente ao exposto parece-nos bastante razoável empreender uma leitura do teatro de Juan de Encina como parte integrante de um projeto cujo objetivo:

1 - estava inserido na conformação de uma propaganda política e na construção de uma específica imagem régia, visando sobretudo legitimar-se;

2 - consolidar o poder dos monarcas frente à opinião pública.

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