terça-feira, 19 de julho de 2011

IGREJA, SACRALIDADE E RELAÇÕES DE PODER: O CARÁTER PEDAGÓGICO DA SANTIDADE NA BAIXA IDADE MÉDIA por Marcos Arêas Coimbra.

A historiografia recente vem pesquisando com afinco as relações do denominado " âmbito do simbólico" e os chamados fundamentos ideológicos do poder - o modo como instituições sociais participantes do complexo jogo de poder se utilizam de elementos do imaginário para consolidar e legitimar pretensões e anseios.

No bojo de toda sociedade é notório, atualmente sobretudo, que ao lado das já consagradas estruturas jurídicas, econômicas, militares, religiosas, há também um amplo campo simbólico de construções sociais tidas como formadoras de uma específica mentalidade.

No período chamado formalmente de Idade Média, este espaço do imaginário era profundamente marcado pelo que se convencionou chamar de intensa sacralidade. Assim, com o advento, fortalecimento e consolidação do Cristianismo, o período da Idade Média registrou uma atenção - na construção das bases estruturais da sociedade - particular a tudo que diz respeito ao aspecto religioso e toda a sua carga de simbolismo.

Deste modo, no mundo dos fatos, ao lado dos poderes laicos verificamos a Igreja como protagonista marcante de todo o contexto histórico, que irá, muitas vezes, paralelamente aos reis e grandes senhores, interpretar um papel fundamental na criação e organização das regras morais e da hierarquia de valores predominantes.

Relatar o desenvolvimento da sacralidade e sua intensificação periódica durante os séculos aqui envolvidos é tarefa de uma vida inteira. O que se quer realmente aqui propor é como a Igreja, através da figura do "Santo ", criará narrativas conhecidas como hagiografias - histórias que contam a vida e os milagres realizados por santos, com forte conteúdo moralizante - ou mesmo histórias contadas em sermões (e toda gama de expressões orais equivalentes), visando substancialmente tornar esta sacralidade cada vez mais enraizada no imaginário social e assim, enquanto instituição social inserida nos jogos de poder, fortalecer-se para, senão ampliar, ao menos manter seu papel como formadora de uma opinião pública.
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O homem do medievo vivia em uma geografia diversa da que estamos acostumados. E quando dizemos que "vivia" estamos afirmando que todo o seu sistema de crenças, valores e formas de existir eram elaborados dentro desta diversa perspectiva.

O caráter mais marcante do modus vivendi do medievo era a sua bipolaridade, ou seja, o cosmos era ao mesmo tempo dois. Céu e terra, natural e sobrenatural, físico e espiritual. Todas as relações humanas eram lidas levando em conta esta geografia, e as interpretações do mundo necessariamente estavam inseridas neste contexto. Cabe ressaltar que nesta dualidade havia uma hierarquização, qual seja, o Céu, morada de Deus, estava no alto e lá residia o destino dos bem aventurados, que, de passagem pela terra, fariam jus a vida eterna ao lado de Deus.

Assim a Igreja, desde seus primórdios, pelo próprio processo de sua criação , o que não cabe aqui também discutir, tomou para si, com pretensa exclusividade, o papel de principal mediadora entre estes dois mundos. Fundada pelo filho primogênito de Deus, o Messias, Jesus Cristo, estava destinada pela Lei divina a trazer ao Homem a possibilidade de salvação.

Com o tempo, e com a expansão do Cristianismo, este papel de mediação foi tomando importância tamanha, criando um fenômeno de proporção bastante significativa na vida do Ocidente Cristão.
E a figura do santo surge neste cenário encaixando-se perfeitamente no painel apresentado. Ora o santo e a santidade, e também lugares e objetos santos, eram mediadores privilegiados capazes de relacionar-se com o sobrenatural de um modo único, trazendo todo tipo de benefícios àqueles que fizessem por merecer sua intercessão.

Destarte a vida de um santo era uma narrativa modelar de como agir para conseguir a tão almejada salvação. Se o Homem era um peregrino neste mundo em busca do direito de subir aos céus, seguir um santo, ter os seus favores, estar até mesmo na posse de um pequeno pedaço de osso seu era um início de garantia de tempos melhores.

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Não podemos olvidar que a Média foi um período de crise, de escassez. Longe de estarmos repetindo a antiga e deformada visão da " era das trevas", seria hipocrisia e erro proposital esquecer que, em função da desorganização política e das incipientes técnicas de produção, o acúmulo de excedentes era mínimo e muitas vezes a produção de alimentos era insuficiente para dar conta da população, ocasionado fomes, pragas etc.

Isto por outro lado tornava as pessoas suscetíveis a argumentos que trouxessem consigo uma mensagem de esperança, e - criando um imaginário suficientemente forte neste sentido - dando margem ao fortalecimento de tudo que dissesse respeito ao único meio viável de salvação, ou seja, a sacralidade ( já que o mundo material parecia provar o contrário).

As manifestações religiosas não foram uniformes. Apesar do papel altamente centralizador da igreja, muitos foram os expedientes utilizados no anseio de uma vida melhor. O Evangelho, que antes de mais nada é uma verdadeira biografia de Cristo, o rei dos reis, era o documento, o guia, principal e viver a sua semelhança era uma tarefa árdua mas recompensadora.

Muitos foram os que buscaram viver esta difícil missão. Muitos buscaram refúgio nas florestas, nos desertos, nas montanhas, em lugares que a posteriori se tornariam "santos", exatamente por terem sido escolhidos para receber aqueles homem capazes de um contato com o divino,o sobrenatural.

Para o propósito deste pequeno texto prendamo-nos na questão seguinte: De que modo a agiu a Igreja diante de tais fenômenos? Aqui chegamos ao ponto central da argumentação.

O status de santo, ou seja, a determinação de algo como pleno de santidade ou não , foi imediatamente apropriado pela Igreja, e deste fenômeno muito dependerá seus movimentos durante séculos. Se em um primeiro momento o objetivo principal era trazer todo esse movimento para dentro da instituição, como podemos ver exemplarmente no caso de Francisco de Assis, em um segundo momento as ações foram no sentido de utilizar este rico manancial de fundamentos ideológicos ao seu favor.

Através de uma vasta construção de narrativas da vida de santos, de consagração de lugares como santos, a igreja legitimava e, sobretudo, organizava e consolidava, os valores determinantes na construção da mentalidade e do imaginário do Ocidente.

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Com o intuito de abordar um pouco mais detidamente a questão da narrativa literária como "documento social" hábil ao historiador, em sua tarefa de compreender os fundamentos ideológico-pedagógicos do poder de uma certa sociedade, faz-se inadiável transcrever aqui um pequeno trecho do versículo intitulado " Santidade" no "Dicionário de Temático do Ocidente Medieval"(SP, Edusc, 2006, pág 449) de Sofia Gajano : " A santidade no Ocidente medieval constitui um fenômeno considerável, de múltiplas dimensões: fenômeno teológico, ela é a expressão da busca do divino; fenômeno teológico, ela é a manifestação de Deus no mundo; fenômeno religioso, ela é um momento privilegiado da relação com o sobrenatural; fenômeno social, ela é um fator de coesão e de identificação dos grupos e da comunidades; fenômeno institucional, ele está no fundamento das estruturas eclesiásticas e monásticas; fenômeno político, enfim, ela é um ponto de interferência ou de coincidência da religião e do poder. Pode-se consequentemente considerar a santidade o lugar de uma mediação bem sucedida entre o natural e o sobrenatural, o material e o espiritual, o mal e o bem, a morte e a vida.".
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Para ilustrar com maior detalhe e tornar mais clara a argumentação aqui presente, propomos a apresentação de um estudo de caso. Trata-se da vida e santidade de São Francisco de Assis, modelo exemplar de apropriação e construção por parte do clero da vida de um santo e da transformação do mesmo em algo maior, am algo com ares institucionais.

Francisco nasceu em Assis, cidade da atual Itália, nos fins do séc. XII, filho de um comerciante bem sucedido com uma nobre de média importância. Viveu uma vida leiga, como um jovem normal, condizente com a sua condição financeira e social.

No meio termo entre a vida adulta e a juventude, Francisco irá vivenciar acontecimentos que o farão mudar de postura e consequentemente de filosofia de vida. Francisco inicia a se questionar sobre s injustiças do mundo quando ao mesmo tempo consegue uma pequena cópia de trechos do Novo Testamento. A leitura da vida e ensinamentos de Cristo, o que era até então monopólio da Igreja, faz com que aquele homem mude radicalmente de vida, abandonando a herança e negócios de sua família e iniciando uma verdadeira vida mendicante. Entendendo que somente se despojando de todos os seus bens materiais ( como a parábola do jovem rico dos evangelhos) para levar a palavra e viver exclusivamente visando a ajuda aos pobres, doentes e marginalizados, Francisco inaugura, ou senão ao menos, radicaliza um movimento novo dentro das práticas religiosas habituais.

Outros movimentos anteriores já haviam praticado uma filosofia semelhante e eram muito parecidos em seus pressupostos com o que propunha Francisco. A grande questão da permanência de Francisco e onde reside toda a sua grande carga simbólica é que ele não irá agir à revelia do clero. Buscará a todo tempo a aprovação e institucionalização de sua ordem junto ao papa, apesar de querer manter os princípios básicos de despojamento dos bens mundanos intactos.

Inicialmente suas atitudes chocaram uma sociedade que colhia os frutos da revitalização do comércio, das cidades, dos excedentes cada vez maiores permitindo uma inicial cultura do luxo fora dos castelos, fazendo com que o olhar desferidos para as atitudes do santo fossem de reprovação ou incompreensão.

Contudo as intenções de Francisco eram tão verdadeiras e seus atos tão concretos, frente a uma sacralidade marcada profundamente pela abstração, que muitos passaram a ver nele algo que buscavam para si, uma vida diferente, fora das intermináveis guerras, discriminações e muito mais perto, em comparação com qualquer exemplo de vida religiosa anterior, daquilo que estava inserido no Novo Testamento.

Francisco era a salvação encarnada, para o peregrino que não compreendia aquele mundo em transformação aquele homem que dormia tranquilamente ao lado de um leproso era uma chance inigualável de redenção. Lembremos, ressalte-se, que o luxo e os excessos da Igreja já estavam sendo contestados com certa veemência por diversos movimentos, denominados por certa autora como verdadeiras tentativas de Reforma.

Mas ele respeitava os sacramentos, acreditava piamente no princípio da obediência. Logo a Igreja viu neste homem uma excelente oportunidade de voltar a se aproximar do pobres, cada vez mais abundantes e distanciados daquele clero de grandes abadias e posses.

Aqui repousa o núcleo de nossa argumentação. Francisco foi absorvido pelo clero, sua ordem institucionalizada e depois de sua morte, à revelia de sua vontade e testamento, a Igreja mandou que Tomás de Celano e São Boaventura, dois homens da universidade, escrevessem uma biografia de Francisco, moldando a sua conduta, e mais, construindo assim um personagem que retratasse o tipo de comportamento santo, o tipo de conduta capaz de conduzir a sociedade para o conjunto de valores almejado por aqueles que detém e esperam manter o poder.

Este tipo de atitude, de iniciativa é exatamente o que determinamos como construção simbólica de uma figura histórica de modo que a mesma se encaixe ou personifique uma proposta que no fundo, não passa de um fundamento ideológico do poder, pois consolida e legitima aquele que o detém.

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