quinta-feira, 14 de julho de 2011

BATALHAS NO CAMPO DA MEMÓRIA: A CRÔNICA DE FERNÃO LOPES NO REINADO DE D.DUARTE ( CRÔNICA DE D.JOÃO I) por Marcos Arêas Coimbra.

No fim do séc. XV o reino de Portugal viveu momento decisivo em sua história. Havia muito que disputas eram travadas entre este reino e o seu vizinho, Castela, o qual insistia em considerar Portugal território vassalo seu.

Com a morte de D. Fernando, Rei de Portugal, o governo ficou a cargo de uma regência, tendo como regente D. Leonor, viúva do rei morto que pertencia a linhagem real de Castela. Este fato gerou situação catalisadora de uma tensão pré-existente. A sociedade portuguesa encontrava-se dividida. Parte da nobreza de Portugal era fiel a Castela. Sobretudo a chamada alta nobreza. Outra parte, constituída de uma nobreza "menor" e de uma nascente burguesia ( setores urbanos) queria a independência completa e a instituição de um governo central que se preocupasse em garantir os interesses exclusivos de Portugal.

Podemos, já de pronto, enxergar que o pano de fundo deste conflito era a formação, ainda que rudimentar, de um Estado Português nos moldes do que hoje chamamos de Nação.

Com a crise instaurada, os contrários a D. Leonor uniram-se em torno da figura do Mestre de Avis, futuro D. João I, filho bastardo do rei morto, e requereram a sua entronização como o legítimo herdeiro. O cenário estava pronto para um embate entre as duas forças, os defensores da permanência da regência e os partidários de D. João I. Este confronto se convencionou chamar de Revolução de Avis. Questões concernentes à problemática envolvendo o termo "revolução " não serão tratadas aqui.

D João I vence o conflito e inicia um projeto de centralização do poder, de constituição de um Estado via burocratização dos serviço públicos, da designação de um poder militar próprio e de afastamento definitivo de Castela. Portugal agora era mais do que nunca uma entidade nacional independente, buscando seus interesses e sua consolidação.




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Com a morte de D. João I, sucede-lhe D.Duarte, seu filho. Este rei será responsável pela nomeação de Fernão Lopes, já a esta época ocupante do cargo de protetor da Torre do Tombo, como cronista mor, ou seja, como incumbido de escrever a história do reino português, sobretudo, da ascensão da Dinastia de Avis.

Aqui aflora a nossa problemática. Quando um rei busca escrever uma memória da chegada ao poder de sua linhagem dinástica, está fazendo-o com diversos objetivos. Estes objetivos são naturalmente a busca de legitimidade e consolidação de seu poder.

Como sabemos há, mesmo para a baixa idade média, uma preocupação por parte dos detentores do poder régio de unir a opinião pública, seus súditos, em prol dos objetivos traçados pela monarquia, fazendo com que tais referenciais, - via propaganda oficial - se tornem fundamentais a todo o Reino.

Demonstrar através de meios simbólicos - ou que criam um imaginário condizente - que os planos traçados pelo rei são para o bem de todos é estratégia "obrigatória" na tarefa de fortalecer e garantir uma posição de poder.

D Duarte, ao nomear Fernão Lopes, está fazendo isto. Conclui muito inteligentemente que a monarquia avisina não podia descuidar-se da tarefa de demonstrar, interna e externamente, a licitude de seu papel. Legitimidade não é atingida somente pelo viés dos chamados "fatores concretos do poder", como uma certa historiografia quer, mas principalmente através da construção de fundamentos ideológicos que tem no simbólico sua marca maior.

Há sempre circulariedade. O imaginário é produzido na medida que se utiliza de elementos da mentalidade coletiva para consolidar-se.

Fernão Lopes dedicará um de seus prólogos ao debate historiográfico. Afirmará que o que faz é " narrar a verdade dos fatos" e fugir de todo " fingido louvor". O cronista quer com isso mostrar a novidade de seu labor, e assim garantir legitimidade para o que ele próprio escreve. É uma outra camada da problemática da legitimidade. Aqui estamos situados no espaço da forma.

Ora se um texto se propõe, mesmo que não abertamente, ser instrumento de legitimação, ele próprio tem que garantir para si uma credibilidade. Além de aspectos da novidade proposta por Fernão Lopes, pois já podemos ver rudimentos claros de um Humanismo transfigurado na busca pela verdade, a colocação da narrativa em um campo epistemológico contrário ao falso era de extrema importância para o sucesso de seu projeto.

Contudo, como ensina o célebre pensador, Memória não se confunde com História. A carga de intencionalidade na construção da memória transpõe o status de simples texto literário para o categoria de instrumento de poder.

Este é o coração da problemática. A construção de memória esta inserida em um "projeto político", e, destarte, os instrumentos teóricos que pensam a "ficção" devem agregar-se ao que se propõe como "ciência".

Como quis o autor de " O Nascimento da Tragédia", para fugirmos das falácias do Positivo, devemos compreender tudo como demasiado humano.

No caso de Fernão Lopes devemos ter em mente a questão da "proximidade". O autor escreve inserido em uma instituição medieval chamada scriptoria , espaço inserido no bojo do palácio real, orientado para a produção de conhecimento. Este conhecimento é instrumento utilizado pelos monarcas em suas atuações políticas. Como quer Le Goff, apesar de não devermos regredir para a historiografia dos "grandes homens e fatos", há ainda no político uma ossatura histórica que determina, e muito, construções simbólicas, e que tem em sua estrutura funcionalidade intensa na prática do fazer histórico.

O poder régio, neste séc. XV de enormes acontecimentos, irá cada vez mais necessitar de justificativas aglutinadoras das forças sociais. Argumentações que anteriormente eram suficientes de pronto, agora devem passar pelo crivo de um espaço discursivo magistralmente estudado e nomeado, pela celebrada medievalista Vânia Fróes, como " Discurso do Paço".

Como quer Habermas, todo poder, para conseguir apoio dos que a ele se submetem, deve em algum momento responder às demandas da argumentação. Perelman, podendo ir mais longe, já que se posicionou sempre como pensador livre, não teme afirmar a base retórica profunda de toda assertiva, mesmo as mais "científicas".

Assim, voltando ao nosso cronista, Fernão Lopes se via em uma posição com espaços de manobra não muito largos, já que esta história deveria ser uma memória, e assim, orientada pelo monarca. Apesar do esforço de Lopes em afirmar diversas vezes a sua imparcialidade, esta mesma era um objetivo impossível de ser alcançado. A não ser é claro que, como Prometeu, aceitasse um destino pouco agradável.



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Detenhamos-nos agora na situação contextual. Lopes deveria escrever um texto que necessitava responder a uma, no dizer de Foucault, "audiência específica". E este fato, no seu caso particular, é sobremaneira interessante, já que se coloca defronte de dois panoramas: o interno e o externo.

No plano interno a Dinastia de Avis necessitava unir os súditos, principalmente os setores urbanos, na defesa de sua legitimidade posto haver uma parte bastante razoável da nobreza que ainda questionava a monarquia avisina e afrontava a mesma com a acusação de usurpadora. Um dos mais ameaçadores e enfraquecedores argumentos desferidos a um rei é acusar o mesmo como possuidor de um poder do qual não tem direito.

Não podemos esquecer de modo algum que o caráter teológico do poder régio ainda estava fortemente arraigado na mentalidade política da baixa idade média. O poder régio ainda tinha a sua fonte suprema na delegação divina. Usurpar o poder real era roubar de Deus algo que lhe pertencia. Logo se o rei legítimo trazia ao reino os benefícios e favores da chancela divina, materializados por exemplo por boas colheitas e boa ordem social e militar, um rei usurpador traria no mínimo má sorte e o afastamento de Deus dos súditos e do reino.

A parte da nobreza portuguesa ainda ligada a Castela esperava a oportunidade de retirar do poder aquela dinastia que para eles fora fruto de um golpe.

Fernão Lopes escreverá então a sua crônica demonstrando que a tomada do poder pelo Mestre de Avis, não somente fora obra da união de todos aqueles realmente fiéis ao reino de Portugal, como também uma façanha com participação direta da intercessão divina.

D João I será associado, como era costume nas práticas ideológicas de fundamentação do poder régio, a uma figura de cunho teológico, no seu caso, o Messias do texto bíblico. O Mestre trazia novos tempos ao reino, tal qual o Messias trouxera nos Esvangelhos, outorgando, por favorecimento divino, a salvação aos escolhidos. Portugal estava na vanguarda de um processo teleológico, cujo fim era a vitória da vida sobre a morte.

Existem diversas associações bíblicas da figura régia na história das monarquias cristãs ocidentais, mas o caso de D. João I pode ser considerado particularmente poderoso, pela própria força do personagem a que o mesmo será associado.

No plano externo faz-se mister lembrar que a Europa estava envolvida em uma guerra entre as suas duas mais poderosas potências: A Guerra dos Cem anos, onde França e Inglaterra batalhavam por territórios.

Uma monarquia que buscasse ampliar suas redes e laços de poder na cristandade ocidental, teria que encontrar o melhor modo frente aos seus interesses, de posicionar-se diante do conflito.

Para a Dinastia de Avis o desafio era duplo. Encontrar a melhor posição estratégica e legitimar-se diante do conjunto de Monarquias e Reinos. O modo encontrado foi o tradicional. A união matrimonial da casa de Avis com a casa inglesa de Lancaster, trazendo sangue de balizada linhagem para a corte portuguesa. Fernão Lopes, exaltando as qualidade de seu rei e sua linhagem, estará atuando como propagador do prestígio oferecido a todos que se dispusessem unir-se ao trono português.

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A monarquia avisina se apresentava como a real representante de um sentimento nacional. De um desejo. Uma nação não é um conjunto de instituições apenas. Traz consigo um conjunto de anseios e simbolismos fundamentais na tarefa de expressar um imaginário suficiente e capaz de gerar similitudes.

A memória se mostra com um desses instrumentos. Na realidade um dos mais poderosos. Fernão Lopes e sua literatura pode, sem titubeios, ser posto no rol dos contribuintes diretos na construção de um Estado e uma identidade portuguesa.

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