quarta-feira, 13 de julho de 2011

PARA QUE HISTÓRIA?

(por Guilherme de Melo Sarmento Filho)


A pergunta, frequentemente feita por professores aos alunos do ensino superior, como também por alunos do ensino básico aos seus professores, proporcionou gostoso debate em uma aula de Teoria da História ao ser levantada pelo professor Sérgio Câmara, dos Institutos Superiores de Ensino La Salle, despertando a minha curiosidade para o desenvolvimento deste ensaio: “Para Quê História?”. Poderíamos formular respostas as mais variadas quanto são as individualidades e as vontades que lhes são próprias.
Aparentemente uma pergunta simples - e por isso mesmo multiforme na resposta -, seu poder de embaraçar ou confundir o interlocutor menos atento, no entanto, aponta para alguns aspectos específicos que gravitam na órbita do seu debate, suscitando a reflexão dos estudantes e a análise pormenorizada dos estudiosos. Jeanne-Marie Gagnebin, ao se debruçar em Heródoto e Tucídides para explorar a questão do discurso em História, nos apresenta três aspectos dos quais dois – a memória e a causalidade - são importantes para estabelecer uma conexão entre a produção e a sua transmissão nas escolas. Particularmente interessante é a distinção que a autora faz entre os dois grandes pioneiros desta ciência, ao analisar a metodologia oral pedagógica de Heródoto, muito próxima da tradição poética de transmissão mítica, porém - e sem negar essa tradição -, claramente em busca das causas humanas e o rigor metodológico baseado no critério e na pesquisa prévia como construção para o futuro de Tucídides: “o ritmo narrativo das historiai lembra o do poema épico, declamado em voz alta ao público reunido em torno do aedo: a prosa de Heródoto está cheia de digressões maravilhosas, de anedotas amenas ou pedagógicas que mantêm aceso o interesse do ouvinte (e do leitor). Nada da arquitetura austera e argumentativa do texto tucidideano, escrito para ser lido no futuro, mas a fluidez de histórias contadas, sem dúvida, para informar e ensinar, mas também pelo simples prazer de contar” (Gagnebin, 1997). Ambos querem conhecer as causas verdadeiras dos acontecimentos não somente pelo conhecimento em si, mas com a finalidade pedagógica de revelar para outrem, um no presente, através da praça pública, o outro no futuro, pela obra didática. Ambos constroem discursos. A função do professor, dentro da sala de aula, não se aproxima desse aedo europeu ou pajé americano da transmissão oral? Nossa preocupação “tucidideana” em formular uma ciência não se afastou demais da narrativa que cativa? Qual medida entre rigor científico e narrativa? Não existe aí na distinção entre Heródoto e Tucídides uma já incipiente divisão epistemológica licenciatura/bacharelado, professor/pesquisador, memória/historiografia? São perguntas que não é intenção desde ensaio responder, mas sim, divagar um pouco sobre a pergunta título dele, porque afinal de contas, “Para Quê História?”.

Uma primeira possibilidade razoável que logo vem à cabeça é a da erudição pela erudição. Pura e simplesmente. A obtenção do conhecimento específico - o Homem no tempo e no espaço, no caso da História – sobre as circunstâncias do passado com suas relações de causa e efeito: implicações sociais, políticas, econômicas e culturais que possibilitariam ao erudito um panorama geral da ação do homem no espaço em uma visão linear de tempo, com seqüências causais, saciando sua sede de respostas pelo conhecimento e compreensão das causas – mesmo com a problemática das retrodicções nas lacunas (Veyne, 2008) – que comporiam o seu cabedal de informações típico de seu estrato social, em que a exibição do seu intelecto é fonte do seu orgulho. Não seria também a erudição objeto de toda disciplina? Para os que não enxergam função prática em História, não seria a erudição objeto ligado ao discurso do homem “civilizado”, culto, que estuda o passado porque pode, porque detêm este “poder” científico que o distingue do outro? Esse outro pode ser o da sua própria casa ou fora dela. O homem que busca o entendimento de si é o homem que cultua o conhecimento. Ainda que sem motivações objetivas a subjetividade do seu ato estará sempre relacionada ao exercício prático porque o conhecimento lhe depurou. Talvez o único problema da erudição pela erudição, em História, esteja numa falta de dinamismo, numa estagnação do pensamento crítico, no determinismo satisfeito das conclusões “inequívocas” que pretendem dar conta de toda ela, através de uma enumeração sequencial de causas e sem a preocupação de problematizá-las como propôs Veyne, adquirindo assim uma espécie de erudição livresca sem mobilidade e critério. Mas, aí então, o erudito já não seria erudito.

Uma segunda possibilidade de se formular e que também não exclui a questão das causas - essa quintessência das ciências -, envolve outro aspecto das proposições do ensino de História e reflete uma conexão mais estreita entre produção e transmissão: A percepção de uma identidade sociocultural através das memórias e tradições. Digo percepção porque a História pode construir discurso, mas não constrói identidade nem passado. Eles são fenômenos independentes do discurso. Os discursos mudam na curta duração, as identidades na longa. A História faz previsões ao contrário, faz previsões sobre o passado, prevê como pode ter acontecido para análise no presente. Todas as fontes são o seu oráculo às avessas. Todas as filosofias historiográficas são cartas que não podem ser desprezadas no jogo da sua previsão. As identidades coletivas independem dos intelectuais que as revelem. Não conheço sociedade que se dissolva por ausência de laços que seus pensadores não os tecem. As identidades coletivas estão no ar, elas tecem por si só, são várias dentro de um mesmo sistema, pairam sobre as nossas cabeças sendo absorvidas dinamicamente todos os dias pelo nosso inconsciente. A História tem função prática porque objetivamente traz ao consciente a percepção desse movimento ao sondar as memórias definindo seus contextos, suas conjunturas, quando, enfim, faz a sua previsão de oráculo as avessas: “Tarefa que religa o presente ao passado, fundando a identidade de uma nação ou de um indivíduo nesta religação constante...” (Gagnebin, 1997), eu só trocaria o verbo fundando por vislumbrando e usaria identidade no plural.
Para Selva Fonseca, a educação tem “a responsabilidade da transmissão, da preservação da experiência humana entendida como cultura”; educar seria “formar, socializar o homem para não se destruir, destruindo o mundo” (Didática e Prática de Ensino de História, p.30). Ora, socializar o homem é oferecer um tipo específico de sociedade, com cultura específica, fundamentando-se nos recortes da memória coletiva e nas tradições que se fixaram pela ação do tempo no consciente ou inconsciente dos indivíduos, transmitidas de um a um através da observação, da oratória ou reprodução nas instituições de ensino e que o preparam para as novas experiências. Este o sentido da escola. Preservação para a estabilidade organizacional, de identidades em comum formadas de memórias e tradições. Mas, como identidade e para quê?
Senão o homem pré-histórico, certamente o da antiguidade, quando os primeiros agrupamentos inauguraram a era das incipientes cidades e das altas culturas, parece que a tendência foi a fixação dos grupos em torno das condições materiais necessárias à sobrevivência, através de laços substanciados em alguma espécie de similaridade de resposta ao meio – e que no séc. XIX da era Cristã a Antropologia chamaria de cultura. O homem estaria buscando então, talvez sem ter consciência disso, uma espécie de estabilidade existencial através da percepção, mesmo que superficial, da sua condição e posição no espaço e no tempo. Ele observa o mundo ao redor, as coisas morrem, passam, repetem-se, e o que antes era uma resposta do seu instinto – transmissão das habilidades de subsistência -, agora, sob formas mais complexas de interação e ocupação, se transforma em uma necessidade tão vital quanto aquele primeiro, na forma de transmissão cultural, para que a realidade ao seu redor não seja um caos sem sentido e sua comunidade não caminhe para o aniquilamento pela ausência de vínculos e experiências, substanciados na similaridade de expressões. Essa percepção do tempo que é dele, da localização no espaço que lhe é próprio, está intrinsecamente ligada a sua identificação com essa memória, individual num primeiro momento – família -, e coletiva no sentido mais amplo, quando se percebe parte integrante da mesma comunidade de expressões, e que poderíamos chamar de identidade cultural. Neste sentido, sendo o tempo cíclico ou linear, parece que a preservação de uma estrutura primitiva de comunidade pelo conhecimento, valorização e transmissão da identidade cultural através do exercício da memória coletiva foi a fórmula encontrada pelas sociedades de todos os tempos, uma chave em comum que as liga e que dá a ciência da História a devida importância: a de averiguar no tempo e no espaço as variações sociais de uma mesma estrutura de preservação comunitária. No que diz respeito ao nosso tempo, a escola é um dos espaços do exercício dessa preservação.
Poderíamos dizer que os fundamentos dessa identidade cultural se encontram nos arquivos de referência - fatos e fontes-, que todo grupo ou indivíduo possui. O “passado social formalizado”, a “memória selecionada” (Hobsbawm, Sobre História, cap.2). A História seria neste caso, a ciência que estuda, valoriza e contextualiza as memórias humanas para a reflexão das identidades coletivas no presente, tendo como metodologia o trabalho nos arquivos de referência, e não, como afirma Paul Veyne, “a arte que supõe a aprendizagem de uma experiência”, (Veyne, 2008), por que, de fato, só experimentamos o nosso tempo; nem sequer aprendemos experiência passada alguma que não seja a nossa própria, que não seja o nosso próprio vivido, o que não quer dizer que não possamos averiguar o outro de qualquer tempo para nos averiguar.

Ainda podemos falar de uma terceira possibilidade: A História como política intelectual de Estado. História – e as ciências em geral – como fonte inesgotável da apropriação de um saber que exibe a categoria do Estado perante as outras nações. Não é segredo que os Estados dominantes do mundo e os que hoje detêm o chamado “Soft Power” tenham desde muito cedo investido maciçamente em ciência, tecnologia e educação, formando uma legião de pesquisadores que abrem diversificadas frentes de sondagem do saber físico e humano, interna ou externamente às suas nações e tendo o globo e o espaço sideral como campo ilimitado de ação. É o que observamos nos países de ponta. O discurso externo é sobre “globalização”, porém, internamente, o que mostram é o fortalecimento de suas identidades nacionais sustentadas pelo oceano dos estudos científicos e planos nacionais de educação, onde as ciências humanas, notadamente a História, têm papel fundamental. O ensino de História dessas nações não é a integrada à História Mundial, mas, inversamente, é a Mundial integrada à Nacional. É Ciro Flammarion Cardoso que diz, “Ao mesmo tempo que pressionam constantemente o Japão em nome da abertura econômica desejável e do livre jogo do mercado, os Estados Unidos, por exemplo, agem para fins internos segundo uma lógica fortemente protecionista... subsidiando com dinheiro público setores de sua economia interna como a agricultura, a indústria espacial e certas produções eletrônicas...” (Cardoso, Repensando a Construção do Espaço, p.22). Ora, a lógica econômica protecionista está ligada a uma forte consciência de identidade nacional, e de sua proteção mesmo. A História de Estado serve tanto para sustentar imaginários ideológicos de um sistema no poder, como também, em sentido mais sutil ainda, para o florescimento da riqueza – entendida como a soma das naturais e culturais - e do poder do Estado no jogo das nações, porque, bem incentivada e empreendida, emancipa os seus indivíduos – pelo domínio e consciência do seu passado - que por seu turno, intimamente identificados da fronteira para dentro, competem com paixão fronteira para fora.
No sentido oposto, a História de Estado, em países como o Brasil, por exemplo, seguindo velhas cartilhas de domínio de uma elite minoria, promove a ocultação do seu caráter emancipador com a clara intenção de manter a dependência das massas aos instrumentos formadores de opinião do Estado, subjugando-as. É a História desinteressada, chata, das grandes datas, nomes e fatos, sem debate e conexão com a realidade dessas massas. É a parca História do Brasil dos livros didáticos neo-colônia. É a História abismo entre o ensino fundamental/médio e as universidades. É a História esquizofrênica e solitária da pesquisa/livro para eruditos ou para a Classe, sem incentivo para o diálogo com a sociedade ou para a larga ampliação dos seus quadros. Por fim, é a História professor mal pago, desautorizado e o aluno bicho fera solto no mato, olhar para o nada e pés sem chão, “Bestializados” como disse outro autor, a se perguntar: - Para que História?





BIBLIOGRAFIA

GAGNEBIN, Jeanne-Marie. O Início da História e as Lágrimas de Tucídides. In:____. Sete Aulas Sobre Linguagem, Memória e História. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
VEYNE, Paul. Como se escreve a história; Foucault revoluciona a história. 4ª ed., Brasília: Editora UNB, 2008.
FONSECA, Selva Guimarães. A Nova LDB, os PCNs e o Ensino de História. In:____. Didática e Prática de Ensino de História. Campinas, SP: Papirus, 2003.
HOBSBAWN, Eric. Sobre História; tradução Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
CARDOSO, Ciro Flamarion. Repensando a Construção do Espaço. Revista de História Regional, Universidade Estadual de Ponta Grossa, 3, 1, p.7-23, 1998.

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